DVD Cidadã da Diversidade

DVD Cidadã da DiversidadeAo contrário do grande questionamento do personagem Hamlet, de William Shakespeare, que vive o drama do “ser ou não ser”, a cantora, compositora e política, Leci Brandão, que recentemente gravou seu segundo DVD, em 37 anos de carreira, mostra-se absolutamente segura ao se autodefinir: “Eu estou deputada, mas sou uma artista.”

Carioca de Madureira, a filha de dona Lecy de Assumpção Brandão, uma servente que morava na escola pública onde trabalhava – foram três colégios em bairros diferentes do Rio de Janeiro –, sempre viveu como aqueles trapezistas que saltam, sem rede de proteção, em permanente busca de novos desafios, desdenhando da palavra “impossível”. Começou a conquistar prêmios em 1968, no programa de calouros A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti, na TV Tupi, até 2008, no 20º Prêmio de Música Brasileira (antigo Sharp e TIM), pelo CD Eu e o Samba, além de dezenas de outros de reconhecimento e títulos de cidadania. Ao gravar seu primeiro compacto, em 1974, já trazia na bagagem o pioneirismo de ser a primeira mulher a integrar a ala de compositores da tradicionalíssima Estação Primeira de Mangueira, onde ingressou dois anos antes. Vinte e três álbuns depois, um DVD, várias participações em gravações coletivas ou em discos de outros artistas como convidada, e ainda a atuação como atriz na novela Xica da Silva, da TV Manchete, como comentarista de desfiles de escolas de sambas, como conselheira da Seppir, como parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo, ninguém mais consegue pensar em Leci Brandão sem acrescentar a classificação “mulher, negra, guerreira”, sempre atenta e participativa na defesa da maioria, que resulta da soma de todas as chamadas “minorias”. Sem subterfúgios, um número grande dos sambas que compõe ou escolhe para interpretar são verdadeiros manifestos políticos em defesa de direitos, da liberdade, da educação, do respeito à diversidade. “Sou uma deputada bastante assídua. Este gabinete tem muita demanda.”

 

CIDADÃ DA DIVERSIDADE

Essa história toda está na ponta da língua das centenas de pessoas que lotavam, numa noite de quarta-feira, o Carioca Club, de Interlagos, em São Paulo, para ouvir e cantar junto com Leci Brandão, em especial seu fã-clube Autoestima, além do ex-ministro de Esportes, Orlando Silva, e do cantor e vereador Netinho de Paula, ambos do Partido Comunista do Brasil.

Naquela noite, porém, políticos de esquerda e fãs tinham apenas um objetivo: prestigiar e festejar com a artista a gravação de seu segundo DVD, sete anos após o primeiro. No palco, um cenário formado por oratórios, ou relicários, em cujo interior foram acomodados ícones que resumem a própria história de vida, de fé e de lutas da cantora. Antes mesmo de sua entrada, para juntar-se ao grupo de 15 músicos e cantores, ouviu-se a Saudação a Iansã, o orixá feminino Oya, no candomblé, que encerrará o DVD, a ser lançado em novembro. “Confesso que me diverti muito nessa gravação”, comenta a cantora, que no palco comandou não só os músicos e o back vocal, mas também a iluminação, o trabalho de sonoplasta e até mesmo os operadores das diversas câmeras para que captassem a imagem de todos os presentes. Conta que foram poucos ensaios, à noite após seus despachos no gabinete. “E, na véspera, mudei toda a concepção e a cara do show. Estava tudo em minha cabeça e não poderia ser diferente”, diz Leci.

 

AOS ÍNDIOS E AOS PROFESSORES

“Quero pedir a essa plateia aplausos aos povos indígenas”, gritou Leci Brandão, antes de cantar a toada Pátria Mata, dos amazonenses Tony e Inaldo Medeiros, acompanhando-se na timba. Seguiu-se o ijexá Marinheiro, de Nego Branco. Então, a cantora deu lugar à militante e fez um breve discurso sobre a necessidade de valorização das pessoas que se dedicam à educação. Conta que viu pela TV uma professora sendo chutada por policiais e que isso a inspirou a compor Anjos da Guarda, canção título de seu CD de 1995, que se tornou hino de manifestações do professorado: “Na sala de aula é que se forma um cidadão / Na sala de aula é que se muda uma nação”. Essa música também está no CD Eu sou assim – Ao vivo, de 2000, e no primeiro DVD, de 2005.

 

Lecy conta que, quando recebeu em seu gabinete o CD da União Popular de Mulheres de Campo Limpo, a composição de Marta Moura, Madrugada, a impressionou demais e resolveu incluí-la no novo DVD e, claro, convidou para interpretá-la em dueto a cantora Thula Mello, que conheceu cantando na noite paulistana. O repertório de 23 músicas teve ainda as inéditas Na Beira da Praia, de André Renato e Gilson Bernini; E por falar em ser feliz, de Didi Pinheiro e Serginho Madureira, e Perfil Popular, da mesma dupla, com Fabiano Sorriso; Nasci pra ter você, de André Pinheiro, Rycardinho e Dédo; Supera, de Riquinho; além do rock que Leci compôs em parceria com o jovem Marquinhos Boldrini, intitulado Ponto de Cultura. O público não resistiu e dançou muito com Que legal eu e você, um ijexá composto em homenagem aos blocos afros da Bahia por Arlindo Cruz, Aloisio Machado e Franco.

 

Houve ainda os sucessos Perdoa, de Xandy de Pilares e Helinho do Salgueiro; Neguinho Poeta, de Bebeto e Serginho Meriti; Agenda, de Beto Guilherme; e Mundo de Ilusão, de Carica, Picolé e Prateado. O ponto alto do show foi quando Leci anunciou o rapper Rappin Hood, que a chamou de “minha madrinha”. Eles cantaram juntos Sou Negrão, de cujo videoclipe ela já havia participado. E quando a cantora anunciou que a gravação havia terminado, o público, em uníssono, começou a cantar a introdução de Zé do Caroço. Ela avisou que esse samba não estava programado para o DVD, mas não pararam de cantar. Ela, então, apanhou a timba e cantou junto. Venceu a voz do povo!

 

INÉDITAS E REGRAVAÇÕES

O repertório do DVD foi cuidadosamente elaborado. Como ninguém pode chegar ao local sem cumprimentar os presentes, para a abertura, foi escolhida a composição Saudação, de Leci com PH do Cavaco, já gravada por Paula Lima. “Quero saudar você dessa minha etnia / Que samba e também denuncia / A força que não quer a paz”.

 

Uma pausa para tomar a benção da mãe, Dona Lecy, que está num camarote, no alto, próximo ao palco. Emoção geral que transforma o público num grande coral, ao entoar Valeu Demais, de Leadro Leahart (ex-Art Popular): “Tudo que a gente passou / Tudo que a gente criou / Foi maravilhoso / Inesquecível demais”.

 

E, aproveitando o clima, emendou com dois sucessos antigos: Papai Vadiou, de Rody do Jacarezinho e Gaspar do Jacarezinho, e As coisas que mamãe me ensinou, de sua autoria. Leci, então, conta que desejou muito gravar esse DVD e que foi a Belém, onde fez uma promessa a Nossa Senhora de Nazaré: “Se ela me ajudasse e eu conseguisse fazer essa gravação, eu incluiria o samba-enredo em homenagem à Festa do Círio de Nazaré, que Aderbal Moreira, Dario Marciano e Nilo Esmera Mendes compuseram para a antiga escola de samba Unidos de São Carlos (hoje Estácio de Sá). Leci cumpriu a promessa e convidou para cantar junto o músico Fabiano Sorriso: “Oh! Virgem Santa / Olhai por nós / Olhai por nós / Oh! Virgem Santa / Pois precisamos de paz.” Em seguida, pergunta quem já viveu a seguinte situação: está prontinho para ir trabalhar, mas voltou para a cama para fazer amor? Muita gente se manifestou. Ela então cantou as inéditas Não dá pra resistir, de Alceu Maia e Sara Benchimol; Minha Fé, de Rodrigo Lira e Roberto Lira, participante do São Paulo Expo Samba, do qual ela foi presidente de honra do júri; e Sem Culpa, de Pedrinho Sem Braço e Paulinho Sampagode. “E que Deus proteja todos os sambistas no meu País.”

 

Matéria feita pela Revista Raça

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